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Amazônia: 70% da Água Doce do Brasil Sob Ameaça

Enquanto metade do mundo enfrenta escassez hídrica, a Amazônia se ergue como a maior fortaleza de água doce do planeta. Dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) confirmam que a região detém sozinho mais de 70% de toda a água doce superficial do Brasil, país que possui 12% do total mundial. No entanto, esta abundância colossal, que deveria garantir segurança hídrica perpétua, está sob ameaça constante e silenciosa.

A equação é simples e alarmante: a água que flui pelos rios amazônicos existe porque a floresta está em pé. A destruição do bioma, portanto, está diretamente ligado à secagem desta fonte.

Especialistas são unânimes: a crise da água no Sudeste e no Nordeste do Brasil se agrava com a degradação da Amazônia.

A floresta como “mãe da água”

A floresta amazônica é frequentemente comparada a uma mãe. Ela gera, protege e distribui a água que sustenta a vida. Mas essa mãe está doente.

O desmatamento, os incêndios e a poluição dos rios ameaçam comprometer esse sistema natural que garante a existência de milhões de pessoas, animais e plantas.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), entre agosto de 2024 e julho de 2025, foram identificados mais de 4.495 km² sob alerta de desmatamento no bioma amazônico.

Ainda que esse número represente uma redução em relação a anos anteriores, o Amazonas registrou aumento em comparação ao ciclo passado, acendendo um alerta para a saúde da floresta e de seus recursos hídricos.

Poluição à beira de casa: galerias despejam água turva e o igarapé sofre com lixo, assoreamento e mau cheiro. Foto: Adilson Moura

Mudanças climáticas e medo da escassez

As mudanças climáticas agravam esse cenário. Estudos da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) indicam que, até 2040, a disponibilidade de água na região Norte pode cair mais de 40% caso o desmatamento e as emissões de gases de efeito estufa não sejam contidos.

Esse risco coloca em pauta o temor de especialistas e da população local de que um dia torneiras possam secar e que espécies da fauna amazônica não encontrem mais seu habitat.

O climatologista Carlos Nobre, referência internacional em estudos sobre a Amazônia, alerta que o bioma se aproxima de um “ponto de não retorno”, em que a floresta deixaria de produzir a umidade necessária para manter seu próprio ciclo de chuvas (Fiocruz).

Quando o igarapé perde força: lâmina d’água rala, detrito acumulado e indícios de contaminação no Igarapé da Vovó, Distrito Industrial. Foto: Adilson Moura

Como a Floresta Cria os “Rios Voadores”

O segredo da riqueza hídrica amazônica não está apenas na chuva, mas em um complexo sistema de retroalimentação entre a floresta e a atmosfera.

Especialistas apontam que os chamados “rios voadores”, correntes de umidade formadas pela evapotranspiração da floresta, são fundamentais para o equilíbrio climático de todo o continente sul-americano.

É a floresta que alimenta o ciclo da água, permitindo que a umidade viaje milhares de quilômetros e garanta chuvas em regiões distantes, inclusive no Centro-Oeste e Sudeste do Brasil.

“A Amazônia funciona como uma bomba d’água. A evapotranspiração da floresta, a água que as árvores liberam para a atmosfera, é maior do que a evaporação do oceano Atlântico nesta região. Esses ‘rios voadores’ de vapor viajam por milhares de quilômetros e são responsáveis por uma parte significativa das chuvas que abastecem o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, além de outros países da América do Sul”, explica Carlos Nobre, climatologista e pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).

Porto de Manicoré, Amazonas. Em terra, a rotina de quem depende do rio; no céu, as bandas de nuvens dos rios voadores seguem seu curso silencioso, lembrando que a floresta bombeia a umidade que move a vida. Foto: Adilson Moura

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Amazonas (SEMA-AM), que reiterou a extrema importância dos recursos hídricos do estado. Em nota, a pasta afirmou:

“O Amazonas é o guardião da maior biodiversidade e dos maiores recursos hídricos do planeta. Nossa política estadual é pautada no desenvolvimento sustentável que valoriza e preserva este patrimônio, essencial para o equilíbrio climático global.”

Três Grandes Ameaças: O Cerco à Maior Reserva Hídrica do Mundo

1. Desmatamento: Rompendo a Bomba D’Água

O desflorestamento é a maior e mais imediata ameaça ao sistema hídrico. Ao remover a vegetação, interrompe-se o ciclo de evapotranspiração.

“Há um ponto de não retorno, um tipping point, que é atingido quando o desmatamento ultrapassa entre 20% e 25% da área original da floresta. Neste cenário, partes da Amazônia podem deixar de ser floresta tropical e se transformar em uma savana degradada (savanização), com um ciclo hidrológico irremediavelmente quebrado. Já estamos em torno de 17% de perda. Estamos perigosamente próximos do limite”, alerta Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em entrevista concedida em 2023 para um painel sobre recursos hídricos.

Entre folhas escassas e ramos secos, a vida insiste mesmo quando o desmatamento desfaz o abrigo. Foto: Adilson Moura

2. Mudanças Climáticas: O Aumento do “Calor”

O aquecimento global potencializa os efeitos do desmatamento. Temperaturas mais altas aumentam a taxa de evaporação, mas também podem alterar padrões de vento e precipitação, tornando eventos extremos, como secas prolongadas e cheias recordes, mais frequentes e intensos.

“A floresta já está mostrando sinais de estresse. Secas severas, como as de 2005, 2010 e 2023, são um aviso. Elas deixam os rios inavegáveis, isolam comunidades, e tornam a floresta mais inflamável e vulnerável. É um ciclo vicioso: a seca facilita o desmate e o fogo, que por sua vez pioram a seca”, afirma Paulo Artaxo, professor do Departamento de Física Aplicada da Universidade de São Paulo (USP) e membro do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas).

Porto da Manaus Moderna. Esgoto a céu aberto e lixo correm para o Rio Negro, revelando o déficit de saneamento que contamina a água, ameaçando a saúde e a vida. Foto: Adilson Moura

3. Poluição: Envenenando a Fonte

A imagem de águas prístinas esconde um problema crescente. O mercúrio usado no garimpo ilegal contamina os peixes, base da alimentação local, e a água. Agrotóxicos e o esgoto não tratado de cidades da região são despejados diretamente nos igarapés e rios.

“Há uma falsa percepção de que a volume de água do Amazonas dilui tudo e resolve o problema. Não resolve. A contaminação por metais pesados é cumulativa na cadeia alimentar. Estamos encontrando níveis alarmantes de mercúrio em populações ribeirinhas, com sérios impactos à saúde. Proteger a água vai muito além de manter seu volume; é essencial manter sua qualidade”, destaca Luciana Gatti, pesquisadora do INPE que estuda as emissões de carbono e os impactos do desmatamento na Amazônia.

A poucos passos do Rio Negro, um monte de lixo cresce à beira do porto e põe em risco usuários, aves e peixes, transformando a orla em fonte de poluição e microplásticos. Foto: Adilson Moura

Responsabilidade coletiva

Apesar do cenário desafiador, ações simples podem contribuir para a preservação da água.

Economizar no dia a dia, como fechar a torneira enquanto se escovam os dentes, reduzir o desperdício e não jogar lixo nos rios, lagos e igarapés, são gestos que, multiplicados, fazem diferença.

Mais do que isso, especialistas reforçam que a proteção da Amazônia exige políticas públicas efetivas, fiscalização ambiental e conscientização coletiva. Como destacou a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) em Nota Técnica sobre mudanças climáticas, a degradação ambiental no estado está diretamente ligada a práticas humanas, e somente o cuidado coletivo pode reverter esse quadro (UFAM).

Balsa carregada de resíduos retirados dos igarapés de Manaus. O que flutua aqui é a prova visível de um problema que começa em terra e termina no rio. Foto: Adilson Moura

O Futuro: A Água Como Estratégia Geopolítica

A preservação da Amazônia deixa de ser uma questão meramente ambiental. Num mundo sedento, onde o World Resources Institute (WRI) classifica 25 países em estresse hídrico extremamente alto, a posição do Brasil como detentor da maior reserva de água doce confere uma responsabilidade e uma vantagem estratégica únicas.

Mais do que um patrimônio brasileiro, a Amazônia é o coração hídrico do mundo. Sua floresta garante o equilíbrio do clima, a vida dos rios e a esperança de um futuro sustentável.

Cuidar da Amazônia significa garantir a segurança hídrica, alimentar e energética do próprio país e de uma parte significativa do continente.

A falha nessa missão, no entanto, pode acionar um interruptor que desliga a maior máquina de água doce do mundo, com consequências catastróficas e irreversíveis.

O destino do “planeta água” depende do destino que se dá à sua principal fonte.

Enquanto o sol se apaga, a vida também se põe, que não se apague a nossa consciência. Água é vida. A floresta é a fonte. Foto: Adilson Moura

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